terça-feira, 11 de setembro de 2007

Manifesto da Casa da Mão

Projeto “A Casa da Mão”

Todo povo que atinge um certo grau
de desenvolvimento sente-se naturalmente
inclinado a prática da educação. Ela é o princípio
por meio do qual a comunidade humana conserva
e transmite a sua peculiaridade física e espiritual.
(Werner Jager, Paidéia)

Apresentação

A discussão sobre ética e educação, ética na formação profissional dos universitários, está sempre muito presente no momento em que se pretende pensar um projeto de ensino. No entanto pouco ou quase nada sobre a dimensão estética da formação do homem aparece como elemento relevante. A maior parte das instituições de ensino superior privilegia claramente a dimensão científica e esquece a dimensão artística, quebrando a velha dicotomia ciência/arte.
A arte é, em si mesma, referência e afirmação de humanidade. Nós contemporâneos descendentes do homo sapiens somos produtores de cultura, produtores de tecnologia, produtores de símbolos e de arte: consciência e intuição manifestas no fazer. Somos frutos de uma errância, de uma travessia... os caminhos exteriores do mundo, as trilhas sinuosas da subjetividade. Habitamos a um só tempo o concreto e o imaginário e constantemente saltamos entre estes dois mundos.
Espécie estranha apta ao belo e ao monstruoso, ao sagrado e ao demoníaco, expomos nossa face múltipla de primata enlouquecido, produtor de cultura e formas. Apaixonados pelas linhas, pelas cores, pelo equilíbrio, traçamos caminhos estéticos, meandros que atravessam portas e corredores onde os comerciantes tilintam suas moedas, onde a vida prática e as obrigações cotidianas dançam em suas vestes cinzentas. Para além do mesmo buscamos o novo a emoção a manifestação de algo que ao brotar de nós, elevamo-no para além do humano tornando-nos ainda mais humanos.
A forja, o buril, o forno, a tekné gerando armas e pincéis, máquinas e instrumentos musicais, moedas e partituras, escritórios e esculturas, templos e bordéis. Aprendizes atentos recebemos, geramos e transmitimos conhecimento e beleza. Diante disso podemos afirmar que a educação caracteriza nossa raça, o aprendizado acompanha nossa vida.
Em temos de tecnologia digital e circuitos que anseiam à inteligência (humana inteligência) o quê senão uma percepção estética do mundo tem o poder de, efetivamente, elevar o homem acima das mesquinharias de sua própria condição? O quê a arte guarda ainda sonhos não globalizados, manifestações não monetárias, princípios não mercadológicos?
A educação e a arte, a educação da arte e a arte da educação residem privilegiadamente − enquanto potência − nas universidades. Toda tecnologia é vã se não carrega consigo princípios éticos e estéticos de organização e utilização. Laboratórios de informática modernizados são ferramentas para a criação que correm o risco de tornarem-se espaços frios e pouco criativos se o imperativo humano não estiver presente, se a criatividade humana não estiver viva.
Nossa dependência crescente da tecnologia, essa espécie de benção e maldição humana, deve ser minimizada, na medida do possível , pois a tecnologia é uma ferramenta da inteligência, manifestação criativa desta e não o contrário. Que o instrumental físico-espiritual humano sobreponha-se ao fascínio da tecnologia.

A mão, o corpo, o olhar... a posse clara da possibilidade. A criança com seus pedaços de carvão desenha linhas e sonhos no calçamento…
A universidade deve resgatar, preservar e difundir o princípio estético/criativo fundador da cultura e do conhecimento dito acadêmico. Deve privilegiar o ensino e a formação artística, deve ter computadores é verdade, mas também pranchetas e pincéis, laboratórios, mas também atelier. Deve ser o reino em que arte e ciência possam conviver, dialogar, interagir, produzir e sonhar.
Não há um verdadeiro conhecimento que seja parcial, não há universidade sem arte… ou sem ciência…

A Casa da Mão propõe o desenvolvimento de uma educação estética para o corpo discente, propõe uma sensibilização dos espíritos, propõe o que absolutamente não é novo, mas que é inquestionável e eterno, sagrado enquanto manifestação. Talvez para o imediatismo do mercado pareça ser mais importante o domínio de um software qualquer, no entanto em termos de uma formação efetiva e não somente instrumental é mais importante a mão suja de tinta do que o dedo imaculado sobre o mouse; até porque, posteriormente, o próprio mouse pode e deve tornar-se instrumentos de criação e superação das possibilidades individuais coletivas.
Não é preciso sequer gerar artistas – ainda que isto possa vir a acontecer – mais premente é gerar uma discussão estética na instituição, uma discussão que conceba a arte como uma manifestação fundamental do conhecimento e do espírito universitário.
Mais do que conhecer software, hardware, pincéis e tintas é preciso saber o que fazer com tantas ferramentas – extensões tecnológicas da mão – é preciso conhecer o que pode e o que já foi feito utilizando tais elementos, ou seja, a criação é sempre uma manifestação que incorpora a história, o conhecimentos prévio, a tradição. A universidade é o local onde as tradições são atualizadas e o conhecimento gerado, um conhecimento que possa vir a tornar-se referência, portanto, tradição.
Enquanto projeto não tem a Casa da Mão um aspecto individual, trata-se de um projeto que depende da ação coletiva e que deve voltar-se para a coletividade acadêmica. É, na verdade, mais do que um projeto: é uma idéia, uma idéia pedagógica, que, neste sentido, deve conduzir alunos e professores a um conhecimento mais pleno. Em sendo uma idéia vai além dos limites formais de um projeto. É lógico que depende de elementos formais para ser totalmente desenvolvida, mas deve ir além deles, deve ocupar reflexões e sonhos, salas de aula e corredores, só então terá vida própria, existência e poder transformador.
A Casa da Mão é uma idéia/projeto para a universidade como um todo, para professores, alunos, funcionários, visitantes, pesquisadores, curiosos, estetas e leigos. A Casa da Mão é um projeto/idéia estético/pedagógico para a universidade, mas que extrapola os limites de instituição, uma vez que as escolas devem formar cidadãos que atuarão na sociedade, afinal o conhecimento é uma herança de nossa espécie e não a benção privilegiada de alguns.

PARA UMA HISTÓRIA PRELIMINAR, OU DA TRADIÇÃO
O projeto da Casa da Mão nasce de um cotidiano evento tecnológico. Em uma destas secas tardes do cerrado trabalhava eu com o computador quando o monitor de vídeo começou a escurecer e acabou vindo por “falecer”, queimou. Pedidos de trabalhos empilhados sobre a mesa e a tecnologia recusava-se a funcionar. Entre a indignação de ver mais um PC “dar pau” e a esperar pelo atendimento do CEINF, desisti e fui para casa pensando no alto grau de dependência que a atual tecnologia nos impõem. Como depender menos das máquinas e seus “achaques” digitais? Como produzir para além da máquina e ao mesmo tempo continuar dando conta da demanda de trabalhos gráficos que justificam o Laboratório de Produtos como um projeto relevante para a universidade?

Após algumas semanas de manhãs ensolaradas as terras centro-ocidentais do país eram atingidas pelo costado de uma frente fria proveniente, como sempre, da Argentina. O semestre letivo preparava seus rituais de encerramento, mais um ciclo se fechava, a primeira turma de formandos do curso de comunicação social da UCB colava grau.
As nove e meia da manhã de uma sexta-feira de algum dia do mês de julho o auditório do bloco K os envolve frio e sonolento; desde segunda-feira os pesquisadores da Escola de Futuro da USP montam computadores e telões, internet e redes, estabelecem discussões por computadores, ou melhor, tentam estabelecer. O óbvio e o novo atravessam manhãs e tardes. E todo o tempo há a clara manifestação de bravura por parte destes professores que enfrentam uma semana de debates sobre o processo pedagógico na universidade após um semestre longo e desgastante. A necessidade de tal evento é evidente e certa para todos, assim como a sensação de que um pouco de descanso seria fundamental. Sentado no fundo da sala, sonolento e com frio observo meus pares apresentarem seus projetos e idéias, sem dúvida o dia mais interessante da semana. Na verdade pensava em minha mulher e meus filhos e sua respiração de sete meses, quando fui iniciado pelo diretor do curso de Comunicação a apresentar os projetos que venho coordenando na universidade, o que de forma alguma eu pretendia fazer, mas diante de tão efusiva insistência acabei concordando.
Até aquele dia as discussões navegaram da ética à tecnologia, sem no entanto sequer tocar a dimensão estética da educação, ou seria a dimensão educacional da estética? Bem não importa. O que fazer diante de todo o desenvolvimento tecnológico e seus jargões? Se o simples progresso tecnológico não é suficiente para melhor as condições de vida, então o que está faltando? Por quê, nos professores tempos a sensação cada vez mais intensa de que alguma coisa ou alguém anda deformando a mente e os espíritos dos estudantes que chegam até a universidade? E a partir de tal constatação, o que fazer para minimizar efeitos passados? O caminho apontado pela escola do futuro tinha cara de deja vu: a velha proposta da tecnologia como panacéia aos males do mundo, no caso aos males da educação.
Faltava algo à pretensa proposta inovadora, faltava a tradição, faltavam a arte e a estética. A Casa da Mão surgiu por reverência à tradição, organizou-se a partir dela. O surgimento da proposta foi um evento coletivo, somente mais tarde percebi as repercussões daquela idéia. Naquela fria manhã de sexta-feira um princípio clássico da educação era atualizado porum grupo de professores em uma jovem Universidade de Taguatinga Sul. A apresentação de tal princípio foi tão arrebatador que até mesmo a USP, por um instante, esqueceu seus computadores… a tecnologia digital curvou-se diante da mão humana, afinal a origem de toda técnica. Propunha-mos a “revolucionária” tecnologia da mão, do corpo, do humano em suas características mais essenciais, mais primitivas: a criação capturada na ponta dos dedos.


Desde aquele dia muita coisa já aconteceu. E a idéia da Casa da Mão tornou-se prática e realidade, de alguma forma a idéia parece ter vida própria, estabelece-se independentemente de projetos, de alguma forma a Casa da Mão simplesmente surgiu. O que antes era formalmente chamado de Laboratório de Produtos transformou-se gerando o espaço propício ao desenvolvimento do novo, tornou-se um lugar privilegiado onde arte e ciência, professores e alunos, criadores e leigos convivem em torno de um objetivo comum: pensar, discutir e criar arte. Tanto que o final do semestre presenciou a primeira mostra da Casa da Mão, um evento em que arte digital e plástica estiveram lado a lado.

Newton Scheufler
Coordenador da Casa da Mão
Julho de 2000

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